08/02/2019, por Aristoteles Atheniense 

A Vale, a resistência de Drummond e o novo governo

As janelas do casarão onde Carlos Drummond de Andrade viveu a sua infância davam para o colosso de ferro que dominava a paisagem de Itabira. “E cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”, dizia ele.

Decorridos muitos anos, quando o poeta visitou a sua cidade foi tomado de uma indignação cívica contra a exploração mineral mantida pela antiga Companhia Vale do Rio Doce. Esse ímpeto o levou a escrever artigos polêmicos divulgados no “Correio da Manhã” e no “Jornal do Brasil”, questionando os efeitos da atuação mineradora.

A seu ver, os lucros não retornaram em benefício de Itabira. Vale lembrar que se a empresa absorvia 70% dos empregos locais, das jazidas então exploradas resultou a riqueza da Vale.

Drummond qualificou a atividade minerária como uma “indústria ladra”, pois, esta “tira sem repor, devassa e abandona os lugares que explora num incessante processo de destruição criativa da terra”.

Em 1970, a empresa atacada publicou no jornal “O Globo” a sua resposta numa sátira aos versos de Drummond, alardeando a existência de “uma pedra no caminho do desenvolvimento”, com a marca obtida naquele ano (20 milhões de toneladas de ferro exportado), acrescida do autoelogio: “somos especialistas em transformar pedras em lucro para a nação. É de mais pedras como essa que o Brasil precisa”.

O flagelo de Brumadinho não foi antecedido apenas pela hecatombe do córrego do Fundão, em Mariana. Além desta, houve o rompimento da barragem de Herculano em Itabirito, sobrevindo novo desastre em Miraí e Muriaé, onde 4.000 pessoas perderam seus lares.

Em 2008, outra ruptura, desta vez numa barragem da CSN, em Congonhas, desalojando milhares de moradores.

O atual presidente da República, na fase pré-eleitoral, enfatizou que a fiscalização ambiental importava num entrave inútil e burocrático. Caberia ao novo governo “tirar o estado do cangote do produtor”. Logo após sua vitória, externou sua disposição em extinguir o foco criador da “indústria de multas”, ou seja, com a abolição do Ministério do Meio Ambiente, criado em 1985.

Ante a reação dos ruralistas, temerosos em perder o mercado internacional para os seus produtos, o Ministério do Meio Ambiente foi mantido. A escolha do titular da pasta recaiu num jovem advogado que já exercera o cargo de diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira, instituição que defende os interesses do setor agropecuário.

Em Minas Gerais, o apoio às mineradoras contou com expressiva ajuda do governador Fernando Pimentel. Partiu dele a iniciativa de enviar projeto ao Legislativo restringindo a atuação do Ministério Público no processo de aprovação das barragens. A medida foi acolhida sem rebuços. Na Assembleia Legislativa, composta de 77 deputados, 55, de todos os partidos, receberam doações quando a contribuição das pessoas jurídicas ainda era permitida pela legislação eleitoral.

A Lei Estadual 21.735 (3/8/2015), que dispunha sobre o crédito estadual não tributário, perdoou as multas aplicadas entre 2011 e 2015 (art. 6º), adotando como pretexto o fato de que o processo de cobrança daquelas multas era oneroso, redundando em valor superior ao das penas cominadas.

Isto ocorreu quatro meses antes da tragédia de Mariana, fato que Pimentel deplorou, com lágrimas de crocodilo, implorando o auxílio da União para cobrir os prejuízos conhecidos e até hoje não reparados.

Não deixa de ser preocupante saber que o atual presidente, quando candidato, houvesse proclamado que “essa questão de licença ambiental atrapalha”, trazendo no seu bojo uma inspiração ideológica. Essa avaliação, na contramão da história, assegura a manutenção de privilégios. As providências anunciadas para conter a voracidade das mineradoras poderão tornar-se uma “comédia embromatória”, a que Drummond se referiu na sua prédica, contra a tremenda desigualdade das forças envolvidas neste processo lucrativo.

No momento, encontra-se em tramitação no Congresso projeto de autoria do ex-senador Romero Jucá, em favor da liberação de atividades consideradas como “estratégicas ao país”. Trata-se de um artifício, a fortalecer o “licenciamento flex”, visando a aprovação automática de empreendimentos que sejam de baixo impacto ambiental.

Em face deste quadro, forçoso é reconhecer que o refrão adotado pela Vale, na segunda metade do século passado, na resposta dada às apreensões de Drummond, ontem como hoje, foi inspirado somente no lucro financeiro das empresas.

É um imperativo resistir a essa pantomima, com a solidariedade do Executivo atual, ainda que este, no passado, não comungasse das providências que todo o Brasil reclama, ante o infortúnio desmedido que vitimou centenas de cidadãos indefesos.