25/11/2020, por Atheniense Advogados

Análise contextualizada dos serviços públicos essenciais em face da Lei nº 13.460 de 2017

Por Itiberê Guarçoni Marinho e Maria Cristina Conde Pellegrino

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRF/88) destacou a garantia da soberania; da cidadania; da dignidade da pessoa humana; dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; do pluralismo político, como fundamentos do Estado Democrático de Direito. Sob esse prisma, a dignificação da pessoa humana não prescinde da atuação do Estado, que tem no indivíduo o ponto cardeal dos ordenamentos jurídicos, e, como tal, o objeto e objetivo principal da norma. É em prol do indivíduo, na consecução da “dignidade da pessoa humana”, que o Estado assumiu a prestação de serviços essenciais, tomando para si a responsabilidade objetiva, direta ou indireta, na eventualidade de danos às pessoas e ao patrimônio.

A própria CRF/88 determina que o prestador de serviço público é responsável objetivo por danos causados ao usuário ou a terceiros, e, simultaneamente, atribuiu ao Poder Público a função de prestar serviços públicos, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão. Ou o Estado presta diretamente os serviços necessários, por meio de órgãos despersonalizados, que exteriorizam a vontade do ente público ou promove os mesmos benefícios, por terceiros, de forma descentralizada, por meio de fundações, consórcios, empresas públicas, autarquias ou sociedades de economia mista, atendendo ao interesse público, sem perder de vista os deveres inerentes à atividade pública.

Ocorre que o serviço público, executado direta ou indiretamente pelo Estado, nem sempre ou, quase sempre, corresponde às expectativas do cidadão, que não tem como prescindir do mesmo, ainda que executado de forma deficitária. Desses questionamentos ou insatisfações, decorreu a necessidade de um instrumento que garantisse aos cidadãos a instrumentalidade do direito constitucional à vida digna, quando se espera que a atividade essencial seja exercida pelo Estado com legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade e proporcionalidade.

Enquanto algumas normas de atuação e prestação do serviço público se submetem a conceitos rígidos, outras prescrevem a execução do serviço de forma genérica, atribuindo grande carga de discricionariedade aos executores, que, invariavelmente tendem a desconsiderar normas legais de cunho mais amplo.

Nesse cenário de controvérsias e normas esparsas, o cidadão, enquanto usuário dos serviços públicos, era relegado a segundo plano, sem a necessária segurança jurídica para a exercício de seus direitos, na condição de “consumidor do serviço público”. Embora personificados num mesmo indivíduo, mas em momentos e condições distintas, o consumidor e o usuário não dispõem das mesmas normas protetivas. Ainda que a legislação consumerista também possa e deva ser considerada para a atividade remunerada estatal, há situações de especificidade no fornecimento de serviço público, exercida por órgão ou entidade da administração, que, igualmente, demanda proteção direta e efetiva para garantia de direitos, fundados nos princípios basilares insculpidos na CRF/88, em vigor.

Ao assumir a posição de consumidor ou de usuário do serviço público, o indivíduo não pode nem deve abdicar do direito de receber o serviço ou produto de forma satisfatória, o que traz a necessidade de entender e distinguir as normas que regulam as relações da prestação do serviço, entre particulares, com a finalidade de obter lucro, daquele serviço destinado ao indivíduo, para cobertura de necessidade essencial, a cargo do Poder Público, sem o viés lucrativo, ainda que remunerado.

Estender a aplicação da lei consumerista aos serviços prestados pelo ente público geraria uma distorção na ideia de relação de consumo, impondo-se a adequação normativa diante da posição de fragilidade do cidadão frente ao poder Público.

A despeito da exigência trazida pela Emenda Constitucional 19 de 1998, bem como de outros dispositivos constitucionais que previam a edição de uma lei de proteção ao usuário do serviço público, somente em 26 de junho de 2017 foi publicada a Lei nº 13.460 de 2017, que dispõe sobre os direitos dos usuários e a obrigação de manter serviço, regulando, igualmente, as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos, em geral, assegurando, ainda, ao usuário a manutenção de serviços de atendimento e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços.

A Lei nº 13.460 de 2017, que dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública, em seu artigo 2º, inciso, II, define o serviço como: “atividade administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por órgão ou entidade da administração pública”. (BRASIL 2017).

Referida lei federal define serviço público como as atividades administrativas de prestação de serviços em geral, titularizadas pelo Estado, de forma direta ou indireta, excluídas as de polícia e de fomento (serviço judiciário, legislativo). Essa a melhor definição, que coliga a técnica legislativa, a doutrina tradicional sobre o tema, os dispositivos constitucionais e as disposições trazidas na lei do usuário do serviço público.

É bem de ver que a definição de serviço no dicionário brasileiro difere daquela proposta pelo Código de Defesa do Consumidor, que, por sua vez difere da definição proposta pela lei de proteção ao usuário do serviço público. Mesmo que se busque visualizar as possíveis similitudes nas relações consumeristas, a definição de serviço deve considerar o tipo de relação empregada, ou seja, se de particulares para particulares, de particulares para o ente público e do ente público para o particular, de modo a definir o aparato normativo a ser observado.

Para a Lei nº 13.460 de 2017, o “usuário”, destinatário da Lei, é tratado como “pessoa física ou jurídica que se beneficia ou utiliza, efetiva ou potencialmente, de serviço público”; a administração pública é o “órgão ou entidade integrante da administração pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a Advocacia Pública e a Defensoria Pública”; e o agente público aquele que “exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente ou sem remuneração”. (BRASIL, 2017).

O texto refere-se, ainda, a manifestações como “reclamações, denúncias, sugestões, elogios e demais pronunciamentos de usuários sobre a prestação de serviços públicos e a conduta de agentes públicos na prestação e fiscalização de tais serviços”. (BRASIL, 2017)

Até a edição da Lei 13460 de 2017, era o Código de Defesa do Consumidor e a Lei nº 8987 de 1997, essa última que trata dos serviços prestados por concessionárias e permissionárias, eram indicadas como parâmetros subsidiários para proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos, prestados direta ou indiretamente pela administração pública. Isso porque, resguardado o parâmetro administrativo, público e geral, o serviço público é também uma relação consumerista, cujas condições não afastam a necessidade de cumprimento de outras legislações, ainda que específicas. Ao contrário, com elas se entrelaçam para a regulamentação dos direitos e deveres do usuário do serviço público.

Tanto da perspectiva Constitucional, quanto doutrinária, o conceito de serviço público pode variar, em sentido mais amplo, restrito ou concepções intermediárias. Em sentido amplo, o conceito de serviço público chega a se confundir com a própria conceituação de Administração Pública e pode incluir a prestação jurisdicional e a atividade legislativa. Em sentido estrito, o conceito envolve, tão somente, os serviços que podem ser remunerados por meio de taxas ou tarifas. Pela concepção intermediária de serviços públicos, são abrangidas as atividades que têm um liame direto e imediato com os indivíduos, dependendo da amplitude e do conceito, considerados nesse serviço.

Destaca-se o fato de que além dos princípios constitucionais inerentes à Administração Pública, quais sejam, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, há ainda, três princípios da atividade pública que também devem ser necessariamente observados: continuidade, mutabilidade do regime jurídico, igualdade.

Quando se fala em serviço público é importante ter em mente que o interesse público deve prevalecer sobre o privado, e que o exercício de uma atividade essencial deve buscar a efetividade dos princípios e dos fundamentos constitucionais, com foco no interesse e no direito da coletividade à vida digna.

Retoma-se, assim, a constatação de que o Estado Democrático de Direito, constitucionalmente estabelecido, assume inúmeras funções. Deve ser atuante e adimplir os deveres que lhe são impostos, de modo a suprir as necessidades básicas dos cidadãos, de forma ampla e eficiente. Nesse aspecto, as inúmeras atribuições do Estado, ao mesmo tempo em que são garantias constitucionais podem, também, gerar ineficiência em razão do “tamanho” do Estado, da burocracia e de uma centralização de atividades muito distintas.

A prestação dos serviços públicos por terceiros, que não diretamente por um órgão da Administração Pública, apresenta-se, pois, como uma solução ou tentativa na crença de que os serviços sejam prestados com a qualidade e a eficiência esperada. Dessa suposição, sobressai a tendência de desconcentração ou descentralização das atividades atribuídas ao Estado, em prol da eficiência, como um dos princípios constitucionais, previsto no caput do artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A prestação de serviços públicos, diretamente pelo ente estatal, ou por particular é um desdobramento dos direitos e garantias fundamentais. Sendo o Estado o agente responsável pela execução da atividade, a responsabilidade, em caso de dano, é do ente que prestou o serviço, sobretudo porque o cidadão, enquanto usuário, é dependente do serviço prestado pelo ente estatal, e como tal acaba por se submeter e sofrer as agruras das mazelas do prestador de serviço.

Apesar da previsão constitucional que assegura ao usuário o direito de reclamar da prestação dos serviços – além de garantir a manutenção de serviços de atendimento e avaliação periódica da qualidade – era evidente a dispersão normativa acerca do tema, sem que houvesse uma previsão concentrada, direta e assertiva sobre os direitos e deveres do usuário do serviço público. Essa lacuna legislativa era, por vezes, sanada pela interpretação de regras análogas do Código de Defesa do Consumidor, o que provocou a sensação de insegurança do usuário.

Foram quase 30 anos de omissão legislativa, até a publicação da Lei nº 13.460, em 2017, que ao inovar trouxe um rol de direitos básicos do usuário (capítulo II, artigo 5º), estipulando diretrizes a serem observadas pelos agentes públicos e prestadores de serviços, desde premissas mais básicas como urbanidade, respeito e acessibilidade (artigo 5º, inciso I), até premissas mais específicas e direcionadas, como autenticação de documentos pelo próprio agente público (artigo 5º, inciso IX), eliminação de formalidades e de exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco envolvido (artigo 5º, inciso XI). A lei também assegura ao usuário o direito de que a informação lhe seja repassada em linguagem simples e compreensível e vedação de obrigações, restrições e sanções não previstas em lei. A especificidade legislativa acerca dos direitos do cidadão, enquanto usuário do serviço público se propôs ao fortalecimento da relação entre usuário e prestador.

Outro ponto benéfico da Lei nº 13.460 de 2017 é atribuir às ouvidorias a função de atuar diretamente na preservação do direito do usuário, como o acompanhamento dos serviços prestados e a possibilidade de promover mediação e conciliação entre o usuário e o órgão, ou a entidade prestadora. Contudo, apesar do claro objetivo da legislação e da importância da matéria, a norma legal não está isenta de críticas.

A proposta da lei, em criar um compilado de direitos do usuário, apesar de relevante, não chega a consumar a pretensão de codificar as regras de defesa do Usuário, sobretudo quando remete a normas adjacentes.

Outro ponto preocupante é o fato de que a edição da Lei nº 13460 de 2017, em seu artigo 1º, § 2º não dispensa a existência de “normas regulamentadoras específicas, quando se tratar de serviço ou atividade sujeitos a regulação ou supervisão” (BRASIL, 2017), o que cria uma ideia de redundância, pois inexiste serviço ou atividade pública que não se sujeite à regulação ou supervisão.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê uma série de direitos aos cidadãos e a prestação de serviços públicos acaba sendo um desdobramento dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.  O Estado, enquanto prestador deste serviço, é responsável pela regulamentação, supervisão, fiscalização e, por conseguinte, responde por eventuais danos que possam ser causados por um serviço prestado de forma ineficaz. O cidadão, enquanto usuário, depende do serviço público, ainda quando prestado de forma deficitária, especialmente em relações ditos essenciais.

O temor é que a norma em discussão não tenha elementos que bastem para mitigar a confusão teórica com o Código de Defesa do Consumidor, sua aplicação subsidiaria ou não, a vinculação das regras ao concessionário ou permissionário, trazendo para o Poder Judiciário, mais uma vez, a tarefa de interpretar e ditar a norma, quando lhe caberia, somente, a aplicação do texto legal, num contexto autoexplicativo, inerente às funções da administração pública.

Mais do que a preocupação com a aplicação correta e literal da norma que trata da relação jurídica entre usuário do serviço público e Poder Público, o conhecimento da Lei nº 13460 de 2017 pelo usuário é urgente. Enquanto o consumidor é objeto de defesa por organizações não governamentais, o “Código de Defesa do Usuário” dirigido ao “consumidor do serviço público” parece não merecer a mesma preocupação. A equivocada crença de que os serviços públicos disponibilizados pelo Estado brasileiro não interessem a todos, aliada à confiança de que o acesso à rede privada suprirá as necessidades essenciais dos que podem custeá-la, culminaram na omissão e na passividade da população, que reservou à classe menos abastada, ainda que majoritária, o grito silencioso contra uma situação dita sem solução.

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