A consagração de um energúmeno
Em palestra dirigida a empresários durante a campanha eleitoral, indagado sobre as alterações que faria na Educação, o candidato Jair Bolsonaro foi incisivo ao afirmar que pretendia “entrar com um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro”.
Num dos encontros rotineiros na saída do Palácio do Alvorada, o presidente defendeu o fim do contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), responsável por gerar a TV Escola. No curso dessa atoarda, denunciou a presença da esquerda naquele órgão, enfatizando a figura de Paulo Freire, qualificando-o de energúmeno.
A sua fala repercutiu negativamente na mídia, servindo para demonstrar o seu total desconhecimento, também, quanto ao trabalho realizado pelo respeitado pedagogo.
Paulo Freire foi sempre um cristão humanista, preocupado com a justiça social. Em 1963, como diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade de Recife, desenvolveu uma experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, de que participaram 300 jovens adultos.
Em face do sucesso obtido, foi convidado no governo de João Goulart a organizar o Plano Nacional de Alfabetização, que não durou mais de treze dias, devido ao golpe militar de 1964.
O plano foi vetado pelos militares, sobrevindo a prisão de Paulo Freire por diversas vezes, até que deixou o Brasil com destino a Bolívia.
No IPM comandado pelo irascível tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima, Freire foi indiciado como responsável pela subversão nos meios intelectuais e de alfabetização. No relatório final do inquérito, o militar concluiu que o sindicado não passava de “…um criptocomunista encapuzado sob a forma de torturador”.
O projeto que iria desenvolver lhe impôs seguidos interrogatórios. Foi questionado sobre os métodos adotados por autores estrangeiros, embora seu objetivo fosse o de promover uma pedagogia moderna. Esta importava numa educação ativa em que o educando pudesse superar a passividade característica da escola antiga e assumir uma posição de participante em seu aprendizado.
Mais tarde, ouvido a respeito das atrocidades a que foi submetido, Paulo Freire resumiu o sofrimento a que foi exposto: “Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar no curto prazo grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influenciassem em seus direitos, sendo necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor”.
O seu sonho consistia em lançar 60.870 Círculos de Cultura para alfabetizar 1,8 milhão de pessoas em 1964, 8,9% do total na faixa de 15 a 45 anos, que não sabiam ler nem escrever.
Assim, o programa Nacional de Alfabetização representava uma ameaça aos redutos políticos nas eleições vindouras. Em Sergipe, permitiria acrescer 80 mil eleitores aos 90 mil já existentes. Em Recife, dobraria praticamente a quantidade de votantes, elevando de 800 mil a 1,3 milhão o número de títulos eleitorais.
O plano foi implantado em países africanos de colonização portuguesa, como Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Quando da realização do Fórum Mundial da Educação Profissional, o Estado, através do Ministério da Justiça, formulou pedido de perdão “post mortem” à viúva e aos filhos do educador.
Se considerarmos a atuação de Paulo Freire e os motivos que o inspiraram, é fácil compreender a aversão que Jair Bolsonaro nutre pela sua pessoa. Enquanto o capitão reformado não passava de um mero integrante do baixo clero na Câmara dos Deputados, Paulo Freire recebia 35 títulos de doutor “honoris causa”. Foi convidado a lecionar nas Universidades de Harvard e Cambridge, tornando-se também consultor do Conselho Mundial das Igrejas em Genebra, na Suíça.
Por força da lei 12.612 (DJ 16/4/12), “o educador Paulo Freire é oficialmente declarado patrono da educação brasileira”, por haver dedicado a sua vida a um apostolado que o consagrou mundialmente.
O seu livro “Pedagogia do oprimido” é o terceiro mais lido na área das Ciências Sociais, segundo dados fornecidos pelo Google. A obra propõe um novo modelo de ensino, com uma dinâmica menos vertical entre professores, alunos e a sociedade na qual se insere.
Em que pesem as agruras por que passou e a fama de “lavador de cérebros” que lhe foi imputada, Paulo Freire manteve-se firme em seu propósito, que ficou condensado nesta passagem: “Nenhuma pedagogia que seja verdadeiramente libertadora pode permanecer distante dos oprimidos, tratando-os como infelizes e apresentando-os aos seus modelos de emulação entre os opressores. Os oprimidos devem ser o seu próprio exemplo na luta pela sua redenção”.