Celso de Mello ultrapassou os limites do debate ao votar
Artigo de Aristoteles Atheniense publicado no portal Consultor Jurídico
Não fiquei perplexo. Sempre me acautelei em relação às vicissitudes das decisões judiciais, por mais respeitáveis que sejam.
Quanto ao voto de desempate proferido na Ação Penal 470, desde as primeiras palavras do culto ministro que o proferiu, convenci-me de seu apelo à letra do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, como de sua apatia à participação popular nas diretrizes de uma sociedade.
Ao referir-se à “pressão das multidões” e ao clamor das “maiorias eventuais”, inferi o seu desprezo à expressão “vox populi vox Dei”, adotada pelos filósofos da Idade Média, e à magistral conceituação de Rousseau: “A vontade geral é a única indicada para dirigir as forças do Estado, segundo o fim de sua instituição, que é o bem comum” (“Discurso sobre a Origem das Desigualdades”, 1793).
O mencionado voto afagou o conceito do ministro Luís Roberto Barroso, emitido na sessão anterior, de que o juiz não deverá impressionar-se com a avaliação que a imprensa fizer de seu pronunciamento.
Ocorre que, entre os gregos e romanos, o povo foi reconhecido como um poder capacitado a decidir os mais importantes assuntos do Estado.
O eminente julgador, que consagrou a validade do regimento interno, poderia fazê-lo, mas sem ultrapassar os limites do debate instaurado. O confronto no deslinde dos embargos infringentes cinge-se, somente, aos votos emitidos no Tribunal e à conclusão do pronunciamento de cada votante.
Não foi o que ocorreu. O decano da Corte, ao final de seu voto, externou, desde logo, a sua adesão ao intento do réu José Dirceu em submeter a decisão final do STF ao reexame da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Segundo afirmou, desde o pacto de San José da Costa Rica, a que o Brasil aderiu, vige a obrigação do nosso país cumprir o que for decidido naquela Corte, após esgotada a jurisdição interna.
Certamente, não ocorreu ao eminente julgador a advertência feita pelo presidente daquela organização, o jurista peruano Diego García-Sayán, que aqui esteve em março passado. Indagado quanto à fortuita reforma de uma decisão condenatória imposta pelo Supremo, foi incisivo ao afastar tal correção pelo Tribunal: “A Corte Interamericana não é um tribunal penal no qual se modificam penas”.
A teor do artigo 1º de seu Estatuto, o seu “… objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Corte exerce suas funções em conformidade com as disposições da citada Convenção e deste Estatuto”.
Em face desse autorizado pronunciamento, como aderir à sugestão do ilustre ministro, no exame do cabimento dos embargos infringentes, se nenhum dos votos cogitou de um novo julgamento externo que ensejasse a reforma da decisão soberana do STF?
Não constituirá surpresa que ao final do processo, subsistindo as condenações impostas, a falange petista arguir que, como as infrações cometidas pelos réus não figuram entre os crimes hediondos (Lei 8072/90), lhes seja concedido o indulto, benefício previsto no artigo 84, XII da Constituição.
Na atualidade, tudo é possível, por mais desusada que seja a pretensão política — e não jurídica — dos inconformados com a decisão derradeira que lhes for adversa.