Em recente entrevista radiofônica, o presidente Jair Bolsonaro especulou: “Para que serve essa Ordem dos Advogados do Brasil a não ser para defender quem está à margem da lei?”
A insolente indagação, ao invés de macular a nossa instituição, serviu para confirmar a já conhecida ojeriza do atual mandatário pelos que não comungam de seus arroubos e o desprezo que devota aos guardiões do Estado de Direito.
A sua intolerância pela OAB é conhecida desde a Câmara dos Deputados. No seu afã de extinguir o Exame de Ordem, instituído em lei, qualificou-o como mero “caça-níquel”.
A importância que a OAB sempre representou para o País e a atividade que desempenha, encontram explicação no seu alheamento à nossa Constituição, embora tenha jurado defendê-la e cumpri-la no ato de sua posse. Caso estivesse inteirado de seus termos e de suas garantias, teria deparado com o art. 133 daquela Carta, reconhecendo que o advogado “é indispensável à administração da justiça”.
Já o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil foi legitimado, expressamente (art. 103, VII), como um dos órgãos aptos a propor ação de inconstitucionalidade.
Se o inquiridor tivesse melhor conhecimento da história política, saberia que o primeiro presidente da OAB, Levi Carneiro, integrou o Tribunal de Justiça de Haia. O seu sucessor, o mineiro Fernando Mello Viana, foi guindado à presidência da Assembleia Constituinte de 1946, após exercer a nossa presidência.
“Para que serve essa OAB?”
Eis a resposta: serviu para que, no auge do Estado Novo, o destemido Sobral Pinto defendesse Luís Carlos Prestes das agruras impostas pela ditadura Vargas, valendo-se da Lei de Proteção aos Animais.
Serviu para que o mesmo advogado assumisse a defesa de Juscelino Kubitschek nos depoimentos a que o ex-presidente foi arrastado, com o visível propósito de levá-lo à loucura ou ao suicídio.
Serviu para que o presidente Raymundo Faoro denunciasse ao presidente Geisel o suplício que grassava nos presídios, que teve no trucidamento do jornalista Vladimir Herzog o seu pináculo.
Serviu para promover a queda de Fernando Collor em processo intentado pela OAB e ABI, então presididas por Marcello Lavenère Machado e Barbosa Lima Sobrinho.
Serviu, em 2016, para promover o impeachment de Dilma Rousseff, através da atuação corajosa de Miguel Reale Júnior e Janaina Paschoal, numa denúncia que contou com a adesão de seu Conselho Federal, na gestão do presidente Claudio Lamachia.
Somente o desconhecimento desses fatos, que sacudiram a Pátria, poderá explicar – e não justificar – a petulante indagação quanto ao escopo de nossa entidade, como se fosse um abrigo de malfeitores.
Uma pergunta despropositada deste jaez revela o intento de mistificar o passado glorioso da instituição, a cujos dirigentes, nos momentos mais críticos da nacionalidade, não faltou a disposição de enfrentar os descalabros cometidos por aqueles que não aspiram o ar vivificante da democracia.
A irreverente inquirição é um deboche aos advogados brasileiros que acreditam na força de seus argumentos e não se intimidam com a arrogância da força do poder.
A crítica a eventual discordância do presidente da OAB é um procedimento válido, inerente a um País onde se cultiva o respeito mútuo como sendo um dos pilares de seu regime político.
Ao questionamento respeitoso, nós advogados, jamais resistimos, dispondo-nos a aceitá-lo, desde que feito em linguagem compatível com as altas funções exercidas por quem o proferiu.
Intolerável, sim, é pretender deslustrar um organismo independente que não pertence somente aos advogados, mas a toda sociedade. Somos o que já fomos e seremos o que nos dispomos a ser: defensores intrépidos dos direitos humanos, adversários permanentes da tortura.
Comungamos, ainda hoje, da advertência feita por Ulysses Guimarães, em 5 de outubro de 1988, no ato da promulgação da Constituição vigente: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. E não pretendemos reformular esta convicção, por mais ousadas que sejam as bravatas que nos forem dirigidas.
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