Repercussão Geral completa seis anos e produz resultados
O instituto da repercussão geral outorgou ao STF duas vantagens importantes: a possibilidade de selecionar as controvérsias mais relevantes e a de conferir o efeito multiplicador às suas decisões[1]. Assim, o Supremo Tribunal Federal poderia se dedicar aos casos mais prementes e relevantes, dispensando-se de apreciar repetidas questões ou controvérsias menos significativas.
Passado o sexto aniversário de funcionamento da repercussão geral, é tempo de avaliar seus avanços e percalços.
Em síntese, a reforma constitucional claramente optou por modelo em que o STF, deixando de examinar individualmente cada processo em tramitação no Brasil, passa a se dedicar a controle de constitucionalidade cada vez mais objetivo.
Com efeito, não é recente a crise de excesso de processos no Suprema Corte. Há exatos 100 anos, em 1913, o ministro Guimarães Natal já relatava, em conferência no Instituto dos Advogados, que “de anno para anno crésce assombrosamente o número de feitos, que sóbem em grau de recurso ao Supremo Tribunal”[2].
Até a Emenda Constitucional 45/2004, a excessiva sobrecarga de feitos no STF provocou o desenvolvimento de jurisprudência cada vez mais defensiva no que tange ao conhecimento do recurso extraordinário. Essa jurisprudência defensiva tornava mais simples a solução dos casos no Supremo, mas não reduzia a demanda, além de ter causado grande frustração e perplexidade entre os jurisdicionados[3].
Além disso, a ausência de eficácia geral nos acórdão prolatados em sede de Recurso Extraordinário exigia que o STF reanalisasse cada um dos milhares de casos idênticos levados ao Poder Judiciário, em sistema claramente disfuncional e irracional[4].
O exemplo dos casos relativos ao FGTS, em que o STF decidiu a mesma questão aproximadamente 60 mil vezes, parece demonstrar a insensatez do modelo. Pior, frequentemente, a jurisprudência fixada pelo STF em casos idênticos deixava de ser aplicada, em virtude da ausência de um dos requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário, em claro prejuízo da isonomia e da autoridade das decisões do Tribunal.
Nesse contexto, é certo que o STF reduziu substancialmente o número de processos distribuídos e, consequentemente, em tramitação, a partir da repercussão geral. A tabela abaixo[5] mostra a radical mudança havida na Corte, no tocante à quantidade de processos em passado recente:
Ano | Protocolados | Distribuídos | Julgados | Estoque |
---|---|---|---|---|
1980 | 9.555 | 9.308 | 9.007 | 722 |
1990 | 18.564 | 16.226 | 16.449 | 11.445 |
2000 | 105.307 | 90.839 | 86.138 | 118.368 |
2006 | 127.535 | 116.216 | 110.284 | 150.001 |
2007 | 119.324 | 112.938 | 159.522 | 129.623 |
2008 | 100.781 | 66.873 | 130.747 | 112.080 |
2009 | 84.369 | 42.729 | 95.524 | 100.634 |
2010 | 71.670 | 41.014 | 103.869 | 90.295 |
2011 | 59.581 | 35.476 | 90.607 | 67.395 |
2012 | 66.930 | 43.190 | 80.730 | 66.831 |
Como se vê, a repercussão geral permitiu a queda de cerca de 70% da distribuição em pouco mais de cinco anos[6] e a redução de dois terços do estoque de processos no Supremo. Cinco providências da Corte em muito contribuíram para os resultados da repercussão geral e merecem ser observadas com mais atenção: (a) o desenvolvimento da ferramenta do Plenário virtual; (b) o incremento das competências da Presidência; (c) a utilização de questões de ordem para definir procedimentos; (d) o tratamento dos agravos de instrumento; e (e) a instalação dos núcleos de repercussão geral.
No que se refere ao Plenário virtual, trata-se de sistema eletrônico para julgar a existência repercussão geral e desonerar a pauta do Plenário físico. Nessa ferramenta, qualquer relator inclui o feito com pronunciamento pela existência ou inexistência de repercussão geral da controvérsia constitucional discutida. O julgamento sempre se inicia na sexta-feira, e os demais ministros podem votar dentro de 20 dias corridos, em qualquer hora do dia ou da noite e em qualquer dia da semana.
O julgamento pode ser acompanhado on-line pelas partes e pela comunidade jurídica no portal do STF, inclusive com acesso às principais peças dos autos[7].
O plenário virtual funcionou tão bem que gerou uma das grandes dificuldades do novo instituto: o excesso de temas que tiveram a repercussão geral reconhecida, mas cujo mérito ainda se encontra pendente por ser inviável apreciar-se a mesma quantidade de feitos no Plenário presencial. Na realidade, a própria fluidez dos julgamentos do plenário virtual poderia desacreditar e deslegitimar a repercussão geral, uma vez que diversos casos estão pendentes há vários anos.
Até o final de 2012[8], o STF concluiu o julgamento de 626 temas, havendo afastado a repercussão geral em 178 questões (28,43%), reconhecendo-a nas demais 448 matérias (71,57%). Destas, apenas 121 (27,01%) tiveram o mérito julgado pelo STF. Isto é, no final de 2012, 327 (72,99%) questões constitucionais aguardavam decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.
O Plenário Virtual facilitou o reconhecimento da repercussão geral, mas criou grande diferença entre os temas de repercussão geral reconhecida e os méritos efetivamente julgados pelo Plenário presencial.
Quanto ao incremento das competências da Presidência da Corte, possibilitou-se o tratamento de temas e a devolução rápida de processos pelo artigo 543-B do CPC, reduzindo drasticamente a distribuição no STF. A partir da própria Emenda Regimental 21/2007, a alteração da competência da presidência permitiu a devolução, independentemente de autuação, de vários processos encaminhados que já deveriam ter sido sobrestados na origem ou, desde logo, reconsiderados ou considerados prejudicados, em razão da sistemática da repercussão geral.
A atuação antecipada da Presidência não só permitiu a verificação do quadro geral de forma ampla, inalcançável para cada relator, como a identificação rápida de temas recorrentes. Assim, caso o presidente verificasse que determinado tema constitucional havia gerado milhares de recursos extraordinários, ele distribuiria apenas alguns apelos e devolveria os demais para sobrestamento na origem. Tal medida reduziu em 75% a distribuição de recursos extraordinários e de agravos de instrumento no STF[9], o que possibilitou aos ministros concentrarem-se nas diversas questões de mérito.
Essa atribuição da Presidência desonerou não só os relatores, mas também a própria estrutura do Tribunal, porquanto realizada antes da distribuição e da autuação dos feitos no STF.
No que se refere às questões de ordem, contribuiu-se sensivelmente para a segurança nos procedimentos e para a devida aplicação da repercussão geral presumida nos casos de jurisprudência pacífica do STF, acentuando o número de controvérsias constitucionais solucionadas.
Basicamente, as questões de ordem foram utilizadas com dois propósitos: uniformizar procedimentos e fixar a jurisprudência pacífica como mérito de repercussão geral. A solução dos casos de repercussão geral presumida por meio de questões de ordem permitiu que o STF revisitasse sua jurisprudência e desse segurança aos tribunais de origem sobre o que realmente estava pacificado pelo STF. Atualmente, a reafirmação da jurisprudência também é efetuada por meio do plenário virtual.
Por sua vez, o tratamento racional dos agravos de instrumento e dos demais pressupostos formais de admissibilidade, principalmente quanto às matérias infraconstitucionais, contribuiu com a expansão do sistema e impediu, pelo menos por enquanto, que o Tribunal despendesse preciosos recursos humanos e materiais com questões adjetivas e formais, em detrimento das discussões substanciais e materiais da interpretação constitucional.
Obviamente, se o regime da repercussão geral deve atingir o recurso extraordinário, que é principal, com mais razão deve afetar também o agravo de instrumento, que é acessório. De outra forma, o tratamento objetivo do recurso extraordinário seria inútil ante a manutenção do modelo exclusivamente subjetivo para os agravos de instrumento. A repercussão geral seria um fardo, sem qualquer benefício quanto ao excesso de feitos levados ao Tribunal.
Daí a edição de duas emendas regimentais: a Emenda Regimental 23, de 11 de março de 2008, e a Emenda Regimental 27, de 28 de novembro de 2008. Em síntese, essas alterações regimentais determinaram a aplicação do regime da repercussão geral sobre o agravo de instrumento e postergaram o exame de admissibilidade do recurso extraordinário, em regra, para depois da análise da existência, ou não, da repercussão geral pelo STF.
Preferencialmente, o sobrestamento e o exame da repercussão geral devem preceder ao exame de admissibilidade, com o propósito de evitar o dispêndio de esforços desnecessários. De fato, se a existência de repercussão geral for negada, o recurso deve ser considerado inadmitido de qualquer forma. Por outro lado, se for reconhecida, o recurso extraordinário ou será considerado prejudicado ou será encaminhado para o juízo de retratação.
Nesses casos, o juízo de admissibilidade só será necessário se, e somente se, a decisão do tribunal de origem for contrária à fixada pelo STF e o órgão prolator mantiver a decisão no juízo de retratação (artigo 543-B, parágrafo 4°, CPC). Em qualquer outra hipótese, o juízo de admissibilidade terá sido desnecessário e só complicará a aplicação da orientação fixada pelo STF, em detrimento da isonomia e da segurança jurídica.
Recentemente, no entanto, o Pleno do STF decidiu que a ausência de preliminar formal de repercussão geral torna inadmissível o recurso extraordinário, mesmo nos casos em que a matéria de fundo teve a repercussão geral reconhecida em outro processo (ARE-QO 663.637, relator ministro Ayres Britto, Pleno, julgado em 12 de setembro de 2012, Informativo/STF 684). Essa orientação parece retornar ao modelo anterior de análise individualizada de cada recurso extraordinário interposto, de caráter marcadamente subjetivo, e desprestigia a decisão constitucional de mérito fixada pelo STF, além da defesa da ordem constitucional objetiva.
Por fim, os núcleos de repercussão geral abrem a perspectiva de melhor organização dos tribunais e juízos ordinários, incrementando a comunicação e a interlocução com o STF.
A constante troca de presidências — e respectivas vice-presidências — tem gerado muito retrabalho nos tribunais de origem, em razão do curto mandato de dois anos previsto na Lei Orgânica da Magistratura. Em bom momento, o CNJ aprovou a Resolução 160, de 19 de outubro de 2012, que determina a instalação, nos tribunais superiores, tribunais de justiça e tribunais regionais federais, de “núcleo de repercussão geral e recursos repetitivos (NURER) no âmbito de suas estruturas administrativas, como unidade permanente”.
Essa estrutura permanente nos tribunais de origem ajudará sensivelmente a organizar novas funções, sem necessidade de partir do zero a cada mudança de gestão, coletando importantes informações a respeito de processos sobrestados, fazendo acompanhamentos dos casos de mérito no STF, gerenciando e selecionando temas a serem encaminhados à Corte.
Os núcleos são responsáveis pela organização duradoura dos tribunais de origem para a sistematização dos temas de repercussão geral, ao invés de manter a pesada fórmula de realizar, em todos e quaisquer casos, o exame de admissibilidade na origem.
A rigor, o exame de admissibilidade no órgão a quo é totalmente despiciendo, apesar de exigir a movimentação não só de órgão do tribunal — em geral a presidência ou vice-presidência —, mas de vários servidores, além de estrutura. O exemplo dos dados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT), apresentados em recente congresso[10], demonstra de forma cabal a irracionalidade do modelo anterior e da própria existência do juízo de admissibilidade na origem: de 1998 a 2011, o TJ-DFT examinou a admissibilidade de 51.104 recursos extraordinários e especiais, sendo admitidos apenas 235(0,45%). No entanto, esse esforço brutal do TJ-DFT, que reconheceu a inadmissibilidade de mais de 99% dos recursos, em nada desonerou os tribunais superiores, pois dos 51.104 recursos inadmitidos na origem (99,54%), 50.912 (99,62%) foram encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal em razão da interposição de agravo de instrumento. Em outras palavras, dos 51.339 recursos apreciados, apenas 192 (0,37%) deixaram de ser encaminhados às instâncias superiores.
Frise-se que o exame do agravo de instrumento no STJ e STF pouco difere do exame dos recursos extraordinários e especiais, devolvendo toda a matéria para exame das Cortes superiores.
Em outras palavras, o juízo de admissibilidade na origem, além de atrasar a prestação jurisdicional e impor custos às partes, desperdiça preciosos recursos humanos e materiais dos tribunais de origem sem desonerar, em nenhuma medida, os tribunais superiores. Por óbvio, decisões que possuem mais de 99% de taxa de recorribilidade necessitam ser repensadas. De lege ferenda, seria mais sensato acabar com o juízo de admissibilidade na origem e aproveitar todos esses recursos nas efetivas e importantes atribuições ligadas à repercussão geral.
Os desafios continuam, no entanto. Apesar da redução drástica do estoque e da distribuição do STF, ainda não se alcançou patamar razoável para a Corte. Por outro lado, é necessário que os efeitos benéficos da repercussão geral também sejam compartilhados pelos órgãos ordinários do Poder Judiciário, que acumulam centenas de milhares de processos sobrestados.
Sem dúvida, o principal desafio hoje é o julgamento de mérito das questões de repercussão geral. O primeiro tema que teve a repercussão geral reconhecida, por meio de questão de ordem na sessão de 26 de setembro de 2007 (RE 559.607/SC, Pleno, DJ 22 de fevereiro de 2008) ainda não teve o mérito incluído em pauta do Plenário, apesar de decorridos quase seis anos! A própria demora na resolução das questões pode gerar descrédito nesse novo instrumento, dada a necessidade de aguardar longos anos com milhares de processos sobrestados — o que faz com que tais alterações não sejam, infelizmente, sentidas por todo Poder Judiciário.
Seja por meio de questões ordem no Plenário Virtual, seja mediante a consideração da jurisprudência fixada pelo Plenário do STF em outros instrumentos processuais, principalmente nas ações constitucionais dotadas de decisões com efeito vinculante e eficácia geral, seja com auxílio de mutirões de julgamento, o STF precisa incrementar radicalmente o número de decisões de mérito de controvérsias constitucionais. Talvez, o ideal seja procedimento no qual, no máximo, em um ano, o STF resolva tema de repercussão geral que reconhecera, em situação bem próxima do realizado pela Suprema Corte americana.
A repercussão geral pode representar solução adequada ao problema de acumulação exagerada de feitos no Judiciário e da disparidade de aplicação das normas constitucionais, desde que empregada como medida constitucional de racionalização e não como mero pressuposto processual de admissibilidade. Na realidade, os instrumentos processuais devem se subordinar à aplicação efetiva e isonômica das disposições constitucionais, não o contrário.
Portanto, a repercussão geral encaminha-se bem no seu início, mas necessita de urgentes esforços para pacificar as controvérsias constitucionais relevantes, já reconhecidas, em tempo adequado, sob pena de frustrar os jurisdicionados e as determinações constitucionais.
Luciano Felício Fuck é professor no Instituto Brasiliense de Direito Público, doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique e membro do conselho editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
Fonte: Conjur