XVI Conferência da Advocacia Mineira – Oração do patrono Aristoteles Atheniense
Inicio esta alocução participando aos que me ouvem que, em 2019, estarei completando 60 anos de exercício ininterrupto da advocacia.
Assim, informo-lhes que, no ano vindouro, irei comemorar bodas de diamante, pela consolidação de meu casamento com a profissão a que jurei fidelidade.
Sou grato ao Senhor por esta mercê.
Milton Campos que, além de governador de Minas Gerais, foi o terceiro presidente da OAB mineira, em aula inaugural dos cursos da UFMG (1/3/1966) disse aos jovens estudantes:
“Envelhecer não é triste porque é natural. Envelhecimento (ou ficar velho) e envilecimento (tornar-se vil, baixo ou degradado). A aproximação fônica pode ser verdadeira no campo fisiológico. Mas, na área moral, é falsa porque cada passo no tempo é um grau na escalada para a sabedoria”.
Não lamento envelhecer. É um privilégio negado a muitos. Entre a infância e a velhice, há um instante que se chama vida.
Tranquilizo-os quanto ao que disser nesta manhã, pois, apesar da longevidade, ainda me sinto no pleno gozo da razão. Não lhes peço que sejam indulgentes comigo, mas que, dentro do possível, avaliem o que irei dizer.
Na adolescência, ouvia meu pai – que foi advogado, promotor e magistrado – afirmar que o ministério da advocacia é o ofício mais livre que alguém poderá escolher.
Quem o eleger, por mais que lute e labute, por maior que seja a sua dedicação, contará com resultado que depende, em última instância, da contingência da prova e do critério falível dos juízes.
No mês passado, recebi em meu escritório, na capital mineira, a diretoria da nossa Seccional e o presidente da Caixa de Assistência, portando convite para que fosse o patrono desta conferência.
À frente da comitiva estavam os eminentes colegas Antônio Fabrício Matos Gonçalves e Sérgio Murilo Braga.
Reconhecido pela honraria com que me distinguiram, reafirmei-lhes o propósito de continuar a ser o que sempre fui. Jamais tentei ser um homem de sucesso, mas somente um homem de valores.
Após aceitar o convite, sozinho em minha sala rebuscando o passado de advogado, deparei-me com uma incerteza preocupante: a que atribuir aquela homenagem?
Seria falsa modéstia, agora, invocar o Evangelho de Mateus e dizer como o centurião: “Domine, non sum dignus…”.
Perscrutei o que levou a OAB mineira a buscar um colega octogenário que fizesse jus a esta deferência. Sou hoje o mais antigo advogado militante no Tribunal de Justiça estadual.
Creio que na escolha, além da minha idade provecta, contribuíram os honrosos cargos que ocupei na OAB, nos planos estadual e federal, a minha filiação a várias entidades jurídicas, a representação do Brasil cumprida no exterior, exercendo sempre com dignidade as missões que me foram cometidas.
Para isso, concorreu a felicidade de ter uma família bem constituída, a esposa amada Elizabeth e quatro filhos solidários em todas as situações: boas ou más.
Asseguro-lhes, estimados colegas, que nunca vacilei ao enfrentar os percalços surgidos, nem perdi a confiança, por maiores que fossem as frustrações de alguns sonhos que acalentei. Não deploro o que não consegui.
Estou certo de que os melhores momentos da minha vida foram aqueles em que pude servir, sentindo-me anonimamente útil, limitando os meus desejos sem preocupar-me em satisfazê-los avidamente.
O baú destinado a guardar as minhas mágoas, não tem fundo…
Hoje, posso repetir com Alexandre Herculano: o segredo da minha felicidade foi encontrar essa alegria na alegria dos outros.
Não há exagero em afirmar que, no curso dessa existência, fiz o que não me foi pesado, ao ponto de divertir-me com o trabalho, que, assim, tornou-se mais leve.
Valho-me deste encontro para concitar a mocidade a reagir com as reservas de sua virilidade, de sua saúde moral, de sua coragem em plasmar um Brasil bem diferente do atual.
Recorrendo, novamente, à experiência de Milton Campos, como jurista e político, dele recolho esta reflexão:
“Nós, mais velhos, temos o dever de lembrar que fomos moços e então não podemos pedir aos moços aquilo que não tínhamos condições de dar quando estávamos nessa idade: paciência, compreensão, moderação”.
Advirto aos jovens advogados que não se deixem levar pelo marasmo, nem transijam com a estagnação ética que assola a Federação.
Indago-lhes: que esperança pode sorrir a uma Pátria cuja geração, adormecida e sonolenta, perdeu a intuição de sua grandeza?
Que esperar daqueles que fizeram do egoísmo a sua maneira de viver, asfixiados pelo imediatismo?
Como conviver com uma linhagem que aderiu ao descrédito, dando mostras de desânimo, descrente de si mesma, sem confiança no dia de amanhã?
A mocidade, que perdeu o contato com as grandes realidades espirituais, com a abolição destes instintos subjacentes e profundos, passou a desinteressar-se pelo país e sua história.
Doravante, não produzirá fecundo e dilatado futuro. Este é obra do esforço, da ousadia, do pensamento construtivo, que levam à ação criadora e enérgica.
Convenhamos que a ideia e o sentimento não bastam para produzir a vontade. É preciso alimentar, também, a vontade de querer, respaldada na inteligência.
O problema vital do Brasil hodierno está em readquirir a vontade, a capacidade de dirigir, repelindo, diariamente, as tentações sedutoras que levam a um enriquecimento tão fácil, como vergonhoso.
Quando, no coração de Minas Gerais, se pensou seriamente na existência de um país livre, foi no cérebro dos advogados e magistrados que um sonho vagamente esboçado na alma popular recebeu forma definida, encarnada no ardente apostolado de sua maior vítima, que pereceu na forca.
O trágico fim de Cláudio Manoel, o degredo de Alvarenga Peixoto e Thomaz Gonzaga, não constituíram somente capítulo glorioso de nossa história política. Pertencem, também, à crônica serena e severa dos mártires do Direito.
Impõe-se, assim, nesta fase de desencanto, retomar a advertência de R. W. Emerson: “toda instituição é a sombra alongada de um homem”, pois, na base de todas as criações sociais está a individualidade.
Mesmo havendo movimentos de opinião coletiva, como ocorreu na Inconfidência Mineira, a sua iniciativa coube a Tiradentes, em torno de quem outros conspiraram, ajustando o plano de propaganda e liberdade do Brasil-Colônia.
Repito: a vontade de querer, aliada à seriedade de propósitos, deve ser retomada pelos que vierem depois de nós.
Com a mesma determinação do escravo grego Diógenes, que vivia em um barril e saía à luz do dia com sua lamparina à procura de um homem honesto, insta encontrar, na eleição de outubro vindouro, independentemente de siglas partidárias, um homem digno e destemido. E que este possa conduzir o país pelas linhas de penetração de seu futuro.
A cultura do Direito contribui para que seja consolidada a ordem moral. Reclama o combate à devassidão em prol da paz jurídica, em que os órgãos de expressão nacional adquirem a plenitude de suas funções e de sua vitalidade.
Tomados dessa consciência, impende reconhecer e proclamar que a exigência da conduta privada está arraigada à própria natureza da advocacia. O seu patrocínio ficará irremediavelmente ferido se a vida particular do advogado estiver em contradição com os valores que ele defende nos pretórios.
O dever geral de probidade não se refere somente à atuação cumprida no processo, mas, igualmente, ao comportamento do profissional na família e na sociedade.
Este, como instrumento do direito, deverá mostrar-se digno da honra e das responsabilidades que lhe são inerentes.
Conforme ressaltou Evandro Lins e Silva, detentor da Medalha Ruy Barbosa:
“a profissão será exercida pela vida inteira e todos nós dependemos do conceito que firmamos nesse desempenho. A boa reputação é o tesouro que se acumula ao longo de uma atividade honrada e criteriosa”.
Já a bravura do advogado, longe de ser defeito, é virtude. É bem mais desejável que a subserviência rasteira dos que, sem coragem para o ataque frontal na defesa de seus clientes, valem-se somente da insinuação como torpe norma de combate.
Daí a admoestação de Kant aos seus alunos na Universidade de Königsberg: “Quem rasteja como verme, não se pode queixar de ter sido calcado aos pés”.
Um advogado que se submetesse ao juiz em manifestação de vassalagem, que temesse desagradar a autoridade, não seria mais que um defensor inerme, inútil e dispendioso.
No juízo do desembargador Rafael Magalhães, que foi presidente do Tribunal da Relação em nosso Estado,
“seria uma tirania exigir que o vencido se referisse com meiguice e doçura ao ato judiciário e à pessoa do julgador que lhe desconheceu o direito”.
O adjetivo “ilustre” e a expressão intercalada “data venia” são usuais na terminologia forense e destinam-se a mostrar que a crítica incide sobre o julgado e não sobre o julgador.
Mas, se a decisão for manifestamente iníqua e ilegal, o advogado não deverá empregar esse tipo de linguagem retórica e parnasiana.
Caso a sentença impugnada for realmente “douta”, então será devida uma palavra de apreço ao seu prolator. Mas, se insustentável em face da lei ou da prova, não será recomendável que lhe sejam tecidos elogios que possam soar a hipocrisia, chaleirismo ou a descabida reverência.
Não devemos pactuar com os rancores do cliente que levem a crítica à pessoa do juiz, em qualquer instância.
Por sua vez, o constituinte não poderá confiar em advogado que lhe assegure vitória da causa quando da contratação da verba honorária; ou que emita profecia em relação ao desfecho da sentença ou recurso; ou que se atreva a antecipar o dia em que o resultado será conhecido; ou que invoque a condição de amigo do magistrado, podendo exercer sobre ele influência no julgamento da causa.
Estou convencido de que o futuro não dispensará a existência da advocacia. O modo de ser do advogado será sempre ditado mais pela vocação do que, propriamente, pela profissão que elegeu.
A convivência entre a grande advocacia societária e o exercício tradicional e quase artesanal, tem gerado conflito e tensões, que poderiam ser evitados em clima de respeitável convivência.
Em uma fase da sociedade, como a atual, em que qualquer pessoa encara a profissão sob a ótica da rentabilidade, não é estranhável que o advogado procure lucro fácil e relegue a segundo plano o próprio interesse jurídico e social da causa que patrocina.
Generaliza-se a ideia de que o exercício profissional deve girar à volta do que é financeiramente rentável, como forma de obter prestígio e dignidade pessoal, por um lado, e no pressuposto de que é socialmente considerado e bem aceito só quem detenha poder econômico.
A preocupação em enriquecer concorre para que alguns advogados tornem-se cúmplices de seus clientes em ações criminosas. Quem assim procede não faz jus às prerrogativas que o Estatuto lhe assegura, pois, qualquer ação que extrapole o limite de empenho na causa, desbordará da razão e tornará o advogado conivente de seu constituinte.
Não será possível condescender com o advogado que faça do Estatuto o seu escudo, assumindo no curso do processo atitudes deselegantes com os julgadores, utilizando expressões ou expedientes desleais.
Com isto, vêm à tona articulados que revelam falta de estudo, beirando à mediocridade e deficiente formação acadêmica.
Como o mercado profissional tende à saturação, a competição pela sobrevivência altera os parâmetros e quadros éticos. Um advogado que se considere generalista não poderá prestar melhores serviços, devido, sobretudo, ao volume excessivo de legislação, aliado às frequentes alterações da jurisprudência vacilante, inclusive nos tribunais superiores.
O historiador Tácito, refletindo sobre a política romana de sua época, ponderou: “Quanto mais corrompido o Estado, mais leis”.
É igualmente verberável que o juiz, abusando de sua posição, restrinja os direitos do advogado, que é a voz daqueles que não tem voz, retirando-lhe a palavra.
Em boa hora, lembrou o bastonário português Ângelo de Almeida Ribeiro, dirigindo-se aos magistrados de seu país: “As nossas togas e as vossas becas são feitas do mesmo tecido”.
O papel fundamental do jurista, na era da tecnologia, consiste em corrigir as distorções da mentalidade cientificista, que só compreende os números e não percebe que os homens não são meros valores quantitativos.
Um dos problemas graves da advocacia brasileira, constatado, especialmente, em relação ao bacharel recém-formado, está em evitar que a sua modernização instrumental e organizacional concorra para a distorção profissional.
Insta considerar, tal como ocorreu no passado, quando da criação das Faculdades de Direito em São Paulo e Olinda, que a advocacia não deixará de ser uma atividade eminentemente política, ao contrário do que querem alguns tecnicistas.
Ou aceitamos voluntariamente esta injunção, ou nos condenaremos à inutilidade, rebaixando-nos fatalmente a assalariados de demandistas.
Exorto aos advogados que me ouvem para que não transijam com as agressões à advocacia cometidas pelo Estado autoritário, através de seus órgãos repressores. Mas que, também, prestigiem as providências necessárias, cumpridas nos limites da lei, que possam redundar na apuração de crimes e prisão de infratores.
SENHORAS E SENHORES:
Reitero os meus agradecimentos pela condição de paraninfo da XVI Conferência da Advocacia Mineira, a que fui alçado pela magnanimidade dos que promoveram este conclave.
Assinalo, por derradeiro, que antevejo esta promoção como vitoriosa, cuja finalidade precípua está no emblema que lhe foi conferido: “Advocacia, acesso à Justiça e EFETIVIDADE”.
Nessa divisa está realçada a EFETIVIDADE, ou seja, o exercício da advocacia, com todos os seus transtornos e expectativas.
A efetividade será sempre a nossa permanente apreensão.
Tornam-se atuais as colocações do advogado e nobre francês Claude-Phillipe Fyot, em 1768, num castelo de Dijon, pouco antes de sua morte, ao proclamar que a advocacia “comove os indiferentes, conforta os fracos e detém os poderosos”.
Ela se presta “a atrair sem constrangimento, a conquistar sem império, sucumbir sem desonra e triunfar sem vaidade e orgulho”, por serem estas as suas características.
Mas, para que possa sempre “prosperar sem espoliações, acreditar-se sem cabala, elevar-se sem favor, manter-se sem baixeza, envelhecer sem corrupção”, é necessário que esses predicados lhe confiram excelência no cumprimento de sua tarefa.
É essencial, então, que proporcione “alegrias puras, glória sem mácula, reputação sem reticência, mérito sem inveja”, pois, “… nisso estará a sua felicidade e, em tudo isso, a sua perfeição”.
MEUS COLEGAS:
Que Deus nos ajude a cumprir com retidão e denodo esses propósitos, neste mundo de incertezas, nesta Pátria que tanto necessita e espera de nós.
Juiz de Fora, 9 de março de 2018.
Aristoteles Atheniense.