Acervo e engrenagens do STF serão desafios de Cármen Lúcia na presidência
Em sua última sessão na 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia se despediu dos colegas com uma mensagem: “O Supremo é um só. O Poder Judiciário no Brasil tem que voltar a ser um só. Acho que juntos somos muito mais”. Embora a fala tenha muitos sentidos, os ministros empregaram a ela o significado de que a ministra promete uma gestão mais participativa e voltada para as necessidades do Judiciário como prestador de serviços.
Nesta segunda-feira (12/9), Cármen assume a Presidência do Supremo e se torna a segunda mulher a presidir a corte. Cármen chega ao cargo cercada de expectativas. Ministra discreta, que não esconde sua aversão a participar de discussões apaixonadas, ela não costuma dar pistas sobre seus planos. Mas ela tem dado a entender que não pretende dar continuidade à pauta corporativa de seu antecessor, o ministro Ricardo Lewandowski.
Uma das primeiras providências da ministra foi avisar aos parlamentares que não dará apoio ao projeto de lei de aumento do salário da magistratura e nem ao de aumento do salário dos ministros do Supremo. Outra medida foi levantar todas as licitações em andamento e contratos que estão perto de vencer. Quer saber como pode economizar.
Ela também já mandou avisar a todos os que contratou para os cargos de confiança que não pretende permitir que eles acumulem diárias para aumentar o salário. É uma prática recorrente entre os servidores, especialmente os que viajam a trabalho. Mas nem os que acompanham a ministra em suas viagens estão autorizados a embolsar o que sobra das diárias.
Depois que voltou de sua última viagem internacional, quando foi representar o Supremo num congresso de cortes constitucionais, Cármen Lúcia devolveu mais de R$ 10 mil em diárias ao tribunal. Para ela, o que não é usado durante a viagem com hospedagem, locomoção e alimentação deve ser devolvido.
Efeito cascata
Mas entre promessas, recados e expectativas, o que a ministra Cármen Lúcia tem pela frente são desafios. Não é novidade que o Supremo tem mais casos em acervo do que pode julgar. Em julho de 1945, a Revista de Jurisprudência Brasileira, que reunia os acórdãos mais importantes do STF de cada semestre, se referia a estudos de 1933 para diagnosticar uma “crise de demanda” ao tribunal.
De lá para cá, a realidade mudou muito, e cada época deu sua solução ao problema. A Constituição de 1946 criou o Tribunal Federal de Recursos, transformado em Superior Tribunal de Justiça pela Constituição de 1988. Para a crise atual, foi criado o instituto da repercussão geral. Trata-se de um filtro de acesso ao tribunal, e só passam por ele os recursos que os ministros consideraram discutir questões constitucionais e de relevância maior que o conflito entre as partes.
O problema é que, depois de reconhecida a repercussão geral de um assunto, todos os recursos que tratam dele em todas as instâncias do Judiciário ficam sobrestados, aguardando a decisão do Supremo. E isso tem colocado o tribunal em dívida com suas obrigações.
Segundo dados do Supremo, o Brasil tem hoje 1,5 milhão de recursos sobrestados. É o resultado de o tribunal ter reconhecido 700 temas como “de repercussão geral” entre 2007 e 2015, mas só ter julgado 221 nesse mesmo período.
Alguns ministros, notadamente Luís Roberto Barroso, defendem que o Supremo não aceite a subida de mais recursos do que pode julgar. A ideia de Barroso é que se crie uma barreira numérica, por semestre. Entre 2007 e 2014, o STF reconheceu a repercussão geral de 70% dos recursos que chegaram às suas portas. Em 2015, essa proporção caiu para 50%.
Embora tenha sido a relatora do primeiro recurso extraordinário julgado na história do Supremo, a ministra Cármen não é uma entusiasta do tema. Segundo estudo feito pela advogada Damares Medina para sua tese de doutorado, Cármen Lúcia só levou ao Plenário Virtual, onde é discutida a repercussão geral dos recursos, 26 processos entre 2007 e 2013. Ela é a segunda que menos levou casos ao debate, depois do ministro Celso de Mello.
Produtividade
Ainda assim, durante a gestão Lewandowski o tribunal conseguiu reduzir seu acervo de 67 mil processos para 54 mil, entre o fim de 2013 e o fim de 2015. Uma queda significativa, de 24%, no número de processos pendentes.
Se a ministra Cármen mantiver o modus operandi que demonstrou nas outras vezes que ocupou cargos administrativos, o ritmo deve se manter, ou até se acelerar. Em 2011, ela assumiu a presidência da 1ª Turma do Supremo e, ao final daquele ano, o colegiado havia julgado 60% mais processos que no ano anterior, quando estava sob a presidência do ministro Marco Aurélio.
Em 2012, a ministra foi eleita presidente do Tribunal Superior Eleitoral e se tornou a primeira mulher na história do país a comandar eleições, naquele ano, municipais. E ela terminou o mandato, em 2014, com 95% dos recursos referentes àquele pleito julgados.
Intramuros
Reclamação quase unânime entre os ministros da gestão de Ricardo Lewandowski, que se encerra na segunda, é a organização burocrática interna da corte. Muitos deles reclamam da Secretaria Judiciária, responsável pela publicação de acórdãos, emissão de ofícios, pelo envio de petições aos ministros e pela distribuição de processos aos gabinetes.
De acordo com integrantes da corte, que preferem não ser identificados, a gestão da Secretaria Judiciária ficou em segundo plano na gestão de Lewandowski. Exemplo tão sério quanto eloquente é uma liminar do ministro Marco Aurélio que vazou para a imprensa antes mesmo de ser registrada no andamento processual.
Outro problema é o da distribuição. Segundo o Relatório de Atividades do STF de 2015, o tribunal recebeu 93,4 mil processos, mas 65 mil foram distribuídos aos gabinetes. Isso significa que 30% dos processos que chegam ao Supremo ficam parados em algum lugar entre a distribuição e os gabinetes.
É um problema que já vem de outros anos. Em 2011, 40% dos processos que chegaram ao Supremo não foram distribuídos. Em 2013, 39%; em 2014, 32%. E muitos ministros atribuem essa realidade à desorganização interna da Judiciária.
Juíza
Como ministra, Cármen Lúcia chama atenção pela discrição. Sua voz raramente é ouvida nos debates travados no Plenário. Já viraram anedota as vezes em que o presidente pulou a vez da ministra na hora de colher os votos. Foi uma gafe cometida pelo ministro Ricardo Lewandowski pelo menos duas vezes, mas ele não foi o único. Em tempos recentes, Cezar Peluso e Joaquim Barbosa também tiveram que ser chamados pela ministra, diante da indelicadeza.
Mesmo quando é relatora, ela evita tomar o tempo dos colegas com a leitura de seus votos. Raramente os declama, como fazem todos os seus colegas. Costuma levar anotações com os principais apontamentos do voto e lê apenas um resumo. Quando atua como vogal, só fala se for para divergir, e mesmo assim de forma contida.
Os casos que a ministra escolhe para levar ao Plenário costumam ter apelo social. Um de que ela se orgulha de ter saído vencedora foi o recurso no qual o tribunal reconheceu nexo causal entre o congelamento de preços de passagens aéreas e as dificuldades financeiras da companhia aérea Varig, que depois faliu e até hoje luta para pagar suas dívidas. Depois da decisão, agora corre a disputa sobre o valor da dívida – a União diz que é de R$ 3 bilhões; a massa falida, de R$ 6 bilhões.
A preocupação de Cármen era com os mutuários do fundo de pensão Aeros, segundo ela, velhinhos aguardando para poder receber suas pensões. O congelamento de preços foi instituído pelo Plano Cruzado, uma das tentativas de combater a hiperinflação dos anos 1980 e 1990. Só que o plano, como todos os anteriores ao Plano Real, não funcionou, e a inflação continuou na casa dos 10% ao dia. No entanto, como os preços de passagens foram congelados por lei, as companhias aéreas tiveram de arcar com o prejuízo.
Foi uma decisão polêmica. O ministro Gilmar Mendes chegou a dizer que, com base nela, até a “birosca da dona Maria” poderia alegar prejuízos em decorrências dos planos econômicos. Mas é uma decisão emblemática, visto que o STF tem na pauta, pendente de julgamento, a discussão sobre a constitucionalidade dos expurgos inflacionários da poupança decorrente dos planos econômicos. Cármen estava impedida porque seu pai era um dos poupadores com processo parado na Justiça, mas, como ele desistiu da ação, agora ela pode julgar o caso. E tudo indica que ela vai ser favorável aos poupadores.
Ela também é conhecida por seu perfil duro na aplicação da lei penal. É a favor, por exemplo, que, no caso de dúvida quanto ao recebimento da denúncia, ela deve ser recebida, “lembrando que, nessa fase, in dubio pro societate”. Para Cármen, nesses casos, deve-se seguir a ação penal para que se comprove a inocência ou culpa do acusado, garantindo o direito de defesa. Mas ficou vencida.
A ministra também ficou vencida quando votou que as punições previstas na Lei de Abuso de Autoridade, de 1965, possam ser aplicadas a juízes. Por maioria, o Supremo entendeu que somente a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) pode tratar de sanções a magistrados.
Cármen também votou a favor da possibilidade de se executar a prisão já depois da decisão de segunda instância em todas as oportunidades que teve. Ela concorda com a tese do ministro Teori Zavascki, de que depois do segundo grau se esgotam as possibilidades de discussão sobre fatos e provas de materialidade e autoria. Ao STJ e ao STF cabem apenas discussões de direitos e garantias.
E se ela costuma se destacar em casos de alta repercussão social, rejeita que o faça por atenção ao clamor das ruas. Quando o Supremo julgava se réus podem participar de concursos, o ministro Luiz Fux votou para que não pudessem, pois “é preciso uma releitura do princípio da presunção de inocência à luz do sentimento popular”.
No entendimento de Fux, foi isso o que o Supremo fez quando declarou Lei da Ficha Limpa constitucional: ouvir o sentimento popular. Cármen prontamente o interrompeu: “O que levei em conta foi o parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição, que determina que lei complementar estabeleça casos de inelegibilidade”.
Mas se é conhecida pelo apreço a punições severas, a ministra nunca se deixou seduzir pela chamada “jurisprudência defensiva”, a que defende restrições ao acesso ao tribunal. Cármen Lúcia jamais encampou a tese de que os Habeas Corpus não podem ser conhecidos se eles forem impetrados como substitutivos de recursos ordinários.
“A liberdade de locomoção há de ser entendida de forma ampla, afetando toda a qualquer medida de autoridade que possa, em tese, acarretar constrangimento à liberdade de ir e vir”, votou, num Habeas Corpus.
Fonte: Conjur